Entrevista | Inês Falcão-Pires

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Investigadora principal do grupo de investigação em Remodelagem Reversa do Miocárdio (Myocare) da Unidade de Investigação Cardiovascular (UnIC), professora catedrática e vice-presidente do Conselho de Representantes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP)

A investigação sempre foi uma certeza para Inês Falcão-Pires (UnIC@RISE). Licenciada em Biologia na Universidade de Aveiro, a investigadora começou o seu percurso na área da Fisiologia.

Em 2009, concluiu, na Faculdade de Medicina da Universidade Porto (FMUP), o Doutoramento em Biologia Humana onde, em parceria com o Departamento de Fisiologia do Vrije University Medical Center (VUMC), aprofundou temas como o impacto da diabetes mellitus nos mecanismos subjacentes à disfunção diastólica e à insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada.

Atualmente, na Unidade de Investigação e Desenvolvimento Cardiovascular (UnIC), dedica-se ao estudo de remodelagem (reversa) cardíaca em doentes com estenose aórtica e, mais recentemente, em mulheres grávidas. Na FMUP, é professora catedrática, vice-presidente do Conselho de Representantes e membro da Comissão de Ética.

Com os olhos postos no futuro, Inês Falcão-Pires vê os biobancos como uma potencial ferramenta para “remodelar” o setor da saúde e a investigação.

A Inês Falcão-Pires já tem uma carreira reconhecida enquanto investigadora e docente. Durante o seu percurso, como surgiu o interesse pela investigação e pela docência?

A partir do momento em que escolhi uma licenciatura do ramo científico, já sabia que a investigação era o caminho que eu queria seguir. O mais difícil foi perceber qual era a área que eu gostava e, de facto, não acertei à primeira. Comecei o meu percurso na Fisiologia Vegetal, mas depois várias razões me levaram a enveredar por um percurso fora da ciência. Passado um ano, integrei o antigo Departamento de Fisiologia da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), através de uma bolsa que me trouxe de volta à ciência. Sempre me interessei por tópicos que fossem mais de perceber do que memorizar e isso agrada-me imenso na Fisiologia Cardiovascular, nomeadamente toda a Biomecânica e a Física por trás do sistema cardiovascular. O interesse pela docência foi crescendo progressivamente. Comecei a lecionar na Escola Superior de Enfermagem do Porto (ESEP) e gostei mais do que estava à espera. Como lecionava Fisiologia Humana, ganhei uma visão global que transpôs a área cardiovascular. Neste contexto, sinto-me uma privilegiada por ter lecionado a maioria dos órgãos e sistemas humanos, algo que me permitiu, hoje, ter uma visão mais integrada do corpo humano.

O facto de ter começado a orientar alunos alavancou as skills pedagógicas. As orientações de alunos de Mestrado e Doutoramento são aquilo que melhor integra os nossos conhecimentos científicos com as nossas capacidades pedagógicas.

Licenciou-se em Biologia. Porquê a escolha desta área e como surgiu o interesse por temas como a remodelagem (reversa) cardíaca?

O diretor do Departamento de Cirurgia e Fisiologia, assim como alguns colegas, por serem clínicos, sempre me estimularam a pensar não só em ciência fundamental, mas também na sua relevância clínica.

O meu interesse pela remodelagem (reversa) cardíaca surgiu logo após o Doutoramento. Eu trabalhei muito com doentes com estenose da válvula aórtica e percebi que era limitada a informação mecanística que se obtém de dados clínicos e biópsias com tamanho reduzido. Então, houve necessidade de recorrer ao modelo animal, difícil de implementar, mas muito informativo durante um certo período. Pouco depois, durante uma das minhas gravidezes, apercebi-me que a mulher grávida poderia ser um modelo humano excecional para estudar tanto a remodelagem cardíaca durante a gravidez, como a remodelagem reversa durante o pós-parto. Apesar das limitações óbvias, permite estudar o impacto de fatores de risco cardiovasculares e aspetos específicos do metabolismo e da resposta aguda cardíaca, estando muito mais próximo do doente cardiovascular do que o rato.

Rapidamente transitamos para este modelo e daí surgiu a coorte PERIMIR que iniciámos estoicamente antes da pandemia, algo que dificultou muitíssimo o recrutamento e follow-up das participantes. Do ponto de vista científico, esta coorte foi tão rica que foi crescendo com novas questões, fruto de colaborações dentro e fora da FMUP, e se estendeu para o estudo da descendência destas mulheres com fatores de risco. Tem atualmente mais de 200 participantes com cinco momentos de avaliação e colheitas seriadas. Agora estamos a tentar implementar um novo modelo, recorrendo a doentes obesos submetidos a cirurgia bariátrica que, após a intervenção, iniciam naturalmente um processo de remodelagem reversa que nos interessa estudar.

Como surgiu o convite para integrar a Unidade de Investigação Cardiovascular (UnIC)? Que desafios surgem ao fazer parte de uma entidade dedicada à investigação cardiovascular?

O convite e integração como membro da UnIC surgiu naturalmente como resultado de ter sido aluna de Doutoramento e fazer investigação no Departamento de Fisiologia. A partir daí, as responsabilidades foram crescendo progressivamente. O Professor Adelino Leite-Moreira felizmente delega e estimula-nos a aceitar desafios, mesmo quando nós próprios hesitamos. Assim, quando a UnIC foi reestruturada, fiquei responsável pela linha temática de “Remodelagem miocárdica e doença valvular”, pois, de facto, fui-me especializando nessa área e seria esta a linha para a qual mais poderia vir a contribuir.

Os desafios de desenvolver investigação cardiovascular surgem mais no início de carreira, isto porque é uma área científica com uma curva de aprendizagem longa, mas ainda hoje tenho de ler bastante e atualizar-me constantemente.

Sempre fui a favor, e cada vez mais acho que equipas multidisciplinares são a base da investigação de qualidade. Neste contexto, penso ter conseguido ganhar o meu espaço e o respeito dos meus pares pelo trabalho que desenvolvo. Eu gosto de estar na posição em que consigo fazer a ponte entre duas áreas científicas, mesmo correndo o risco de nunca ser suficientemente “clínica” ou suficientemente “básica”.

No Dia do RISE, abordou os biobancos e a necessidade de apostar no desenvolvimento dos mesmos. Na sua visão, qual é a importância dos biobancos e que impacto poderão ter na investigação em saúde?

Os biobancos são uma forma de facilitar e de tornar acessível amostras preciosas à comunidade científica e, como tal, vão ter um impacto brutal na investigação científica, é só uma questão de os profissionalizarmos. Durante o Doutoramento, trabalhei com biópsias miocárdicas que eram colhidas fora de horas e eu tive de adaptar os meus horários, de forma as conseguir trabalhar com material tão escasso e precioso. Se houvesse um fluxo de colheitas estruturado, com procedimentos operacionais estandardizados e recursos humanos para o efeito, muito mais amostras biológicas poderiam ser canalizadas para biobancos e disponibilizadas para fins de investigação científica.

Nós temos a sorte de ter um repositório de amostras, eticamente aprovado no âmbito de vários projetos, que nos são muito úteis para fazer a translação do modelo animal para o contexto humano. Acho que os biobancos de amostras animais são um investimento igualmente importante, principalmente numa época em que vários países limitaram a utilização de animais para fins experimentais. No futuro, os biobancos de modelos animais poderão ser a solução mais eficaz para a redução da utilização de animais para fins experimentais. Se os biobancos animais forem feitos de forma sistemática e padronizada, permitirão utilizar o mesmo modelo animal ou modelo espontâneo (proveniente de clínicas veterinárias) para servir simultaneamente vários projetos de investigação científica. Os biobancos vão ser uma ferramenta imprescindível no presente e no futuro!

Apesar da sua juventude, a Inês Falcão-Pires conta já com diversas participações em projetos internacionais de investigação. Que desafios surgem ao integrar iniciativas desta dimensão?

Eu sempre gostei muito de trabalhar com várias equipas e acho que colaborando somos mais fortes. Fui bastante jovem para o estrangeiro e rapidamente percebi as mais-valias de estar exposta a outros ambientes e de “beber” diferentes formas de pensar e trabalhar. Prezo muito as minhas colaborações e projetos internacionais.

As colaborações de sucesso e os projetos aprovados são experiências incríveis ao nível do intercâmbio de estudantes. Estas experiências permitem contactar com outros cientistas, obter outras perspetivas e perceber que somos bons naquilo que fazemos e que, por isso, recorrem sistematicamente à nossa equipa, algo que valoriza o nosso trabalho. O grande desafio é ter estruturas que alavanquem as candidaturas destes projetos. Por muito boa que seja a ciência, há um conjunto de outras dimensões nos formulários dos projetos internacionais que precisam de ser orientadas e limadas por estruturas de apoio à candidatura e submissão de projetos. Tem havido iniciativas e esforços no sentido de impulsionar recursos de apoio a candidaturas, mas há alguns anos estávamos muito sozinhos, algo que comprometia a competitividade.

Na sua perspetiva, qual a importância da criação de uma Rede de Investigação em Saúde? Que impacto poderá ter o Laboratório Associado RISE no setor da saúde e na investigação ligada a esta temática? 

Na minha opinião e na minha experiência, o RISE – Rede de Investigação em Saúde tem servido para nos “pôr” a colaborar dentro de portas. Pela primeira vez sinto que, com o RISE, existe mais comunicação entre departamentos, a qual tem promovido projetos colaborativos de grande valor científicos.

Que desafios sentiu, enquanto investigadora, ao integrar o Laboratório Associado?

O grande desafio do RISE é fazer muito com pouco dinheiro e, a nível pessoal, a regulamentação de um projeto novo é um desafio. O Laboratório Associado tem trazido algumas agradáveis surpresas, nomeadamente através da colaboração interdepartamental.